O longo e tenebroso inverno deste ano – para usar uma expressão meio fora de moda – o longo e tenebroso inverno me faz lembrar invernos muito antigos. Aqueles que pareciam ainda mais frios, por conta dos agasalhos parcos e das limitações dentro das moradias.
Se eu recordo os velhos tempos, as crianças arregalam os seus olhos. Elas não sabem se é para acreditar de fato que meias eram quase um luxo. Calçados, idem. Que os casacos de nylon não tinham sido inventados e que os tecidos existentes mal e mal barravam a temperatura e a umidade. As crianças sacodem a cabeça. Provavelmente pensam que inventei a história. Só que não.
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A gente convivia com a natureza na maior afinação. Havia certo deslumbramento, sim, e uma reverência com essa entidade superior que no verão fazia suar e, no inverno, nos gelava. Não se experimentava esse afã de contrariar a natureza, de quebrar-lhe a força. A natureza tinha autoridade e assim devia ser. O calor e o frio mereciam respeito, chegavam na hora que tinham de chegar. Eram comemorados, eu até ousaria dizer. Colaborava para isso o fato de se fazerem acompanhar de atenuantes apreciáveis. Por exemplo, tirava-se partido das noites longas, para espichar a hora da conversa em torno do fogão. Com o bônus do pinhão na chapa, ainda por cima.
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Hoje, inverno em boa parte é coisa para olhar. Olha-se o inverno pela janela dos ambientes aquecidos. Olha-se o inverno a partir de uma trincheira formada pelas botas, pela roupa impermeável, pelas camisetas térmicas. Agora se convoca todo tipo de intermediário para barrar as sensações. Os intermediários nos separam do calor, do frio, e dão a impressão de que nos cabe dobrar a espinha da natureza, anular-lhe a força, botá-la de joelhos para ela aprender quem é que manda.
Mario Quintana tinha raiva dos intermediários. Fossem estes os padres, os críticos ou os canudinhos de refresco – como ele dizia, rindo. Ele não queria intermediários estorvando a ligação direta. Ele queria a imediatez do encontro.
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Fosse por que a gente não tinha opção, fosse por desconhecer alternativa, o certo é que nós gostávamos da intimidade com o tempo e a temperatura. Nós éramos capazes de pisar o gelo na valeta. Nós testávamos a geada com os dedos. A densidade da fumaça condensada diante do nariz valia como unidade de medida. Não precisava de termômetro para saber do frio.
E era bonito fazer a operação inversa, quero dizer, esquentar as mãos no fogo, aconchegar-se nos acolchoados de lã de ovelha, degustar a sopa fumegante.
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Os invernos de antigamente eram recebidos com a consideração que as visitas mereciam. Quando iam embora, abriam espaço para outra experiência, que igualmente seria bem-vinda.
Acho que ser feliz era mais fácil. Mesmo no longo e tenebroso inverno.