O ator Lázaro Ramos publicou uma espécie de autobiografia no ano de 2017. O livro se chama “Na minha pele”. Ali ele compartilha experiências pessoais e, de modo especial, conta como foi a tomada de consciência da condição de negro e do preconceito de raça.
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A grande virtude do livro é a sinceridade. Lázaro Ramos abre o coração. Fala de modo espontâneo e despretensioso. Não assume papel de vítima, não cobra nada. Quer somente contribuir para que as pessoas consigam se colocar na pele do outro e perceber que cada um só enxerga uma parcela da realidade.
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Lázaro Ramos explica esta ideia, incluindo no livro uma lenda africana sobre origem. Figurativamente, a lenda demonstra a limitação do olhar particular.
A lenda é assim:
“Entre o Orum (mundo espiritual) e Aiyê (mundo material) existia um espelho e tudo o que aparecia no Orum materializava-se no Aiyê. Ou seja, o mundo espiritual refletia exatamente o mundo material. Portanto, era preciso tomar muito cuidado com o espelho. O espelho refletia toda a verdade do mundo.
Um dia, a jovem Mahura estava ajudando sua mãe a ralar inhame. Um segundo de distração foi o suficiente. Mahura perdeu o controle do movimento ritmado da mão, bateu forte no espelho e este se espatifou lançando cacos pelo mundo inteiro.
Daquele dia em diante, não existiu mais uma única verdade. Quem achar um pedacinho do espelho estará encontrando apenas uma parte da verdade, porque cada caco de espelho reproduz apenas a imagem do lugar em que se encontra.”
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Estou pensando na lenda do espelho partido.
Cheguei ontem à noite a Istambul, a capital da Turquia, e ainda não vi praticamente nada. Mas, no café da manhã me admirei da quantidade de saladas que fazem parte da primeira refeição do dia. Alguém pode perguntar: “por que folhas verdes, pepinos, tomates, azeitonas, etc. no café da manhã”? Da mesma forma, alguém pode dizer: “por que não incluir vegetais no café da manhã?”
Aqui está uma maneira concreta de exemplificar a lição trazida pelo livro de Lázaro Ramos.
Quando a gente se transplanta para outra geografia, outra língua, outra cultura, consegue enxergar melhor como as nossas certezas não tem a força que acreditamos que têm. Quero dizer, a gente se acostuma a pensar de um jeito e se convence de que é o único possível. Mas não é.
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Em resumo, aqui está um convite para pensar sobre a fragilidade das nossas ideias e sobre o respeito que devemos às ideias dos outros. Coisa que vale para todos os campos. Também para a escolha dos governantes, que se avizinha no Brasil.