O samba “Amanhã”, do qual retirei os versos acima, é já meio velhinho. Foi enredo da União da Ilha do Governador, no carnaval do ano de 1978. Mas faz uma pergunta que não sai da moda: Como será o amanhã? A gravação da cantora Simone é linda. Vale a pena revisitar.
Pois bem, a canção “Amanhã” me vem à cabeça na tentativa de achar palavras para a admiração com um fenômeno presente onde quer que se vá. O fenômeno do grude no celular.
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A recente viagem que fiz ao sul da Ásia mostrou que a epidemia – não seria este um nome bom para o fenômeno? – a epidemia é generalizada. Seja nos aeroportos, seja dentro dos aviões, seja nos restaurantes, nas lojas, na areia da praia. Pessoas sós ou grupos reunidos, todo mundo está absorvido pelo celular.
Nos bares e restaurantes, a disponibilidade de internet é quase condição para ir chegando. Se não tivesse, o que as pessoas ficariam fazendo enquanto esperam o prato solicitado ou no intervalo em que param de dançar e vão descansar um pouco? O que ficariam fazendo enquanto tomam uma cervejinha?
A situação pode ser descrita assim: a gente está rodeada de amigos de carne e osso e, ao mesmo tempo, mantem conversa com outros amigos ausentes, com cada um dos quais fala sobre assuntos diferentes, talvez até em línguas diferentes. Uma parte da atenção aqui na mesa; outra parte, distribuída entre as conversas que se travam simultaneamente. A pessoa fica dispersa, como se estivesse organizada em fatias. Está em muitos lugares e não está completamente em lugar nenhum.
Acho que a mente humana faz uma ginástica descomunal para dar conta de uma empreitada dessas.
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Sabe-se lá… fico cismando. E se esta hiperatividade vier a se revelar benéfica para o cérebro? É ou não é importante dar trabalho para ele? Palavras cruzadas, aprendizados novos… será que, no fim das contas, o antídoto para as doenças degenerativas da mente estaria chegando de onde não se esperava? Exatamente das astúcias do celular?
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Também adoro o celular e as maravilhas que ele opera. A facilidade da comunicação me assombra. Mas, por enquanto, estou firme na paçoca. O plano é não deixar que se torne poderoso a ponto de roubar os meus tesouros. A saber: quero continuar em rodas de conversa viva; quero manter o privilégio da leitura longa; quero me perder no silêncio da paisagem; quero a exclusividade da atenção que dou e que recebo.
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De todo o modo, a pergunta sobre como será o amanhã nunca me pareceu mais oportuna.