Eu estava no ônibus, em excursão programada. Comigo, mais umas duas dezenas de pessoas. A autoestrada perfeita atravessava plantações. Um rio corria mais além. O zunido do motor, o sol a pino, mais a quantidade dos quilômetros já rodados, tudo contribuía para deixar os passageiros meio zonzos. Aliás, alguns até dormiam a sono solto.
Foi aí que o guia começou a falar ao microfone.
Nem dei atenção, pois ele falava em língua que eu não conseguiria entender, mesmo que quisesse.
Mas compreendi, bem compreendido, quando ele deu nome para o rio e deu nome para a região onde nos encontrávamos. O rio era o Eufrates, a região era a Mesopotâmia.
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Que coisa! Me senti dentro de uma antiga aula de Geografia.
A professora falava em Mesopotâmia, falava sobre o rio Eufrates. Os alunos ouviam como se ouvissem notícias de um lugar inalcançável, de um tempo perdido nas nuvens da ficção.
Só que agora, aqui, era a Mesopotâmia de verdade. Era o rio Eufrates no duro.
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Naquele longínquo tempo de escola, a Mesopotâmia parecia alguma coisa difusa, um espaço remoto, que a gente nem sabia como classificar. A Mesopotâmia se enquadrava numa categoria que a imaginação mal tateava. Era meio parecida com o céu, o Negrinho do Pastoreio, a arca de Noé, as capitanias hereditárias, os esquimós, os Três Mosqueteiros.
Mesopotâmia não era um espaço material, onde se pudesse botar o pé. Fazia parte do mundo dos livros e da sala de aula. Começava e terminava lá mesmo. E, claro, era também um ponto a decorar para o dia da prova.
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Naquele longínquo tempo de escola, os mapas eram raros, as fotografias, mais ainda. Os livros escolares ajudavam um pouco, mas as ilustrações que eles mostravam caíam na mesma linha das ilustrações presentes no catecismo ou nos santinhos distribuídos na igreja. Havia o cotidiano, o pão-pão-queijo-queijo e havia a escola. A escola era onde as palavras produziam lugares. Ou seja, a escola utilizava palavras para construir mundos e feitos heroicos. Sim, a gente acreditava nas palavras dos adultos. Se eles diziam que a cegonha trazia os bebês, se diziam que a Mesopotâmia existia, ok, a gente acreditava. Mas acreditava, principalmente, porque a obediência pedia isto das crianças. E estamos conversados!
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Mas agora, passados tantos anos, estou costeando a Mesopotâmia. Vejo o rio Eufrates represado numa barragem colossal. Noutro ponto, vejo o rio Eufrates correndo mansamente, como tem sido pelos séculos dos séculos. E tenho a sensação de que o tempo e o espaço fazem as pazes. Tenho, enfim, a sensação de me reconciliar com o livro de Geografia.
A lição do livro deixa de pertencer ao livro e vem se abraçar com a vida aqui, agora. Ao vivo e em cores.