Numa manhã, há dias, eu caminhava cedo, aproveitando o frescor da hora e os sinais de primavera. Era fácil deixar o pensamento flutuando no amarelo dos ipês, contra aquele céu escandalosamente azul.
Manhãs de primavera são convite para embolsar um pouco da luz nova, essa que nos chega com o rumor dos passarinhos. Ah! se fosse possível ancorar ali no ar e esquecer tudo o que complica e desarruma a vida…
Não dá. Paciência.
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Então, lá me ia eu na manhã de primavera e passava exatamente perto de uma escadaria longa, quando ouvi alguém chamar.
Uma moça chamava e acenava com a mão. Estava um pouco longe e não dava para ouvir o que dizia. Ao chegar mais perto, notei que os gestos não eram para mim, como pensara. Atrás vinha alguém trajado nos conformes e correndo como manda o manual dos corredores esportivos. Era com ele que a moça ia falar.
O rapaz – na verdade um rapagão – tinha todo o jeito de atleta: o porte, a roupa, os fones para ouvir sei-lá-o-quê, em vez de ficar na mão dos barulhos babaquaras, como eu.
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Em seguida a cena se organizou e eu pude acompanhar. Pelo jeito, o encontro estava arranjado previamente. A moça ia filmar o cara. E filmou. Ele subiu e desceu correndo a escadaria repetidas vezes, até o vídeo ganhar aprovação. Corria como se contasse com asas invisíveis.
Fiquei olhando a coisa, enquanto deixava solto o pensamento.
Percorrer a escadaria correndo não é coisa pra quem quer. Eu não conseguiria, mesmo se suasse toneladas. Quem pode… pode por que é dono do preparo físico condizente e tem a seu favor os músculos mais jovens.
Bateu a tentação de lamentar a idade – que avança para todos, mas que arrepia mais quando a soma é mais comprida. Bom, aí busquei me consolar…
Ter empuxo pra sair da cama a bater pernas cedo, contou um ponto na balança em que fui buscar consolação.
Ser capaz de caminhar, sem enguiço no joelho, valeu mais outro.
Lembrar de ver os passarinhos e de ouvir o canto, também foi ponto.
Conseguir olhar o céu e as cores, idem, dem.
Ter a recompensa de um chimarrão ao chegar em casa, seria o quê, a não ser um ponto extra?
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E retomei a marcha na manhã esplendorosa. Botei na balança as duas medidas em avaliação. De um lado, a finitude que arrodeia a vida. Do outro? Do outro lado, a maravilha de aproveitar as horas, para recolher e celebrar a felicidade que é possível.