Saiu muito apressada de casa. Estava, mais uma vez, atrasada para uma consulta com aquele famoso neurologista cognitivo, Doutor-Sei- Lá-Quem, que ela procuraria para tratar justamente de seus frequentes esquecimentos. A turma da academia dizia que ele era ótimo e resolvia a maioria dos problemas com medicação leve e até alguns exercícios. “Além disso é um gato”, acrescentou dona Alda, a mais velha da turma e que, por ter chegado à terceira idade, se achava no direito de mais de uma consulta por semestre. No caminho, ligou para o marido e o alertou para não esquecer de fazer as cópias das chaves da casa da praia, porque os filhos iriam até lá com amigos. Em seguida chamou a sogra para combinar um chá, com torta de limão siciliano, sem açúcar! Sim, estava pré-diabética. Mal dobrou a esquina e a filha mais velha chamou pelo viva-voz: “Mãe! passa na faculdade, vou precisar de carona. Estou com todo o material para um trabalho específico Memória quase cheia sobre arquitetura romana. E não posso pesquisar no Google. São 12 livros”, reclamou. Quando chegou no primeiro semáforo, o sinal lhe alertou que, antes de mais nada, deveria retirar o vestido vermelho que deixara para lavar a seco. Seria usado no Baile de Formatura das gêmeas – Nara, morena crespa e Clara, a loira de cabelos lisos. Nunca errara ou trocara os nomes. Mas, estava esquecendo muitas coisas. Por exemplo, cuidar melhor da pele, os hidratantes bons custavam “os olhos da cara”, mas eram fundamentais. Sim, aqueles à base de amêndoas que tinham dois efeitos: a maciez quase que imediata e o perfume que atraía o marido sempre distraído para “essas coisas de romance”. Meu Deus! O peixe! Precisava ir ao Mercado Público, onde encomendara a “seu” Pedro, um salmão selvagem, aqueles que vem diretamente do Alaska. Na volta passaria na padaria para buscar o pão especial que Júnior, o caçula, pediu para montar os sanduíches do piquenique da escola. Seria sábado ou domingo?
Ah! Essa memória que falha. Em menos de meia hora retornou da consulta com o tal médico. E nesses rápidos minutos ele ouviu toda a ladainha, uma extensa agenda guardada como? Na memória, ora! E por isso, sem necessitar mais relatos, receitou um ansiolítico e exigiu que dividisse com o esposo as atividades da casa. Ambos eram profissionais liberais, poderia combinar atividades. “Eu não estou louca”, reagiu. “Mas se continuar assim, passará da ansiedade à depressão em pouco tempo”, ouviu, sem querer acreditar. A única coisa que vinha esquecendo, na realidade, era dar um tempo para si mesma. As agendas alheias lhe deixavam a memória do Eu quase cheia em função dos demais pronomes familiares “Ele, Nós, Vós, Eles”. E assim, definitivamente, por determinação médica, optou por escapar do cansaço, um substantivo abstrato que já se tornava um drama doméstico concreto.