No meu tempo de criança, passar frio no inverno era justo e apropriado.
O frio era para curtir no osso. Ou seja, sentir no corpo, nas orelhas, no nariz. Frio era para doer. Doer nas frieiras que apareciam nos pés e nas mãos; doer na pele dos calcanhares que rachavam, doer nas mãos que tinham de enfrentar a água gelada do tanque ou da torneira.
O único alívio vinha com o fogão a lenha. Mas, ainda aqui, havia um pedágio por pagar. O fogo não atendia a comando algum. Era preciso rachar lenha, colher gravetos, atiçar as brasas. Depois, cabia esfregar a chapa do fogão até brilhar, pois o fulgor da chapa dava a medida do capricho de uma casa. E ser caprichoso era outra escolha que não cabia fazer. Ser caprichoso era compulsório.
Sim. Frio era para aguentar. A mesma coisa valia para o calor, para a dor de cabeça, para as visitas chatas, para as cerimônias compridas, para as aulas tediosas, para a comida insossa. Não se pensava em fugir da raia. Aguentava-se simplesmente. Todo mundo aguentava o que fosse necessário. Isso se aprendia quase sem perceber.
Aguentavam-se frustrações sem tugir nem mugir, porque assim a vida era.
Mas o mundo mudou. A vida já não é tão impiedosa. Foi para o espaço a ideia de que não há escapatória. A arte de suportar baixou de cotação.
As temperaturas extremas são enfrentadas na base do controle remoto, que liga o condicionador de ar sem a gente precisar mover o derrière. Água quente encanada aumentou o prestígio do banho em pleno inverno. Roupas de lã se tornaram mercadoria barata. Melhorou a culinária. Os professores tem de caprichar mais nas aulas que ministram. As missas são mais breves. Os analgésicos tornaram-se banais. O desconfiômetro das visitas afinou o tom. O chefe insuportável é premiado com o nosso pedido de demissão.
Ninguém mais suporta nada. Por um lado isto é muito bom. Por outro, fez crescer o desamparo.
Assim: se o frio e o calor estão domados, se há facilidades inimaginadas, se o Instagram ensina como a felicidade é… a vida continua a apresentar também a dor, a perda e o fracasso. O caso é que, agora, eles nos pegam sem ter havido ensaio. Quando chegam, nos encontram sem destreza para ancarar o tranco.
A modernidade nos deixou fora de forma para enfrentar o sofrimento.