Estava pronto para escrever algum texto menos dolorido, sem muitos rescaldos dos últimos dias. Mas tudo ainda está a ser feito, reconstruído, tratado com delicadeza e precisão. Arroio do Meio devastada! Tantos outros municípios desapareceram do mapa, engolidos por um aguaceiro nunca visto. O que temos a oferecer além de solidariedade? Um dia de trabalho, um pedaço das economias reservadas para o veraneio, o que for possível doar de boa vontade.
Esvaziei o roupeiro com tudo que não me servia mais, ou guardava para uma ocasião especial que nunca veio. Móveis, um fogão, pratos e talheres remanescentes de um período onde recebia muitos amigos e vizinhos em casa. Hoje esses encontros são mais raros, especialmente após o trauma da Covid. Enfim, todos a cuidar de suas próprias vidas. É a correria em nome de uma sobrevivência digna! Então, acumular para quê?
Agora surgiu esse desastre que abriu uma oportunidade de levar algum conforto aos vizinhos que não escaparam da enchente. Aqui em Eldorado do Sul foi traumático e nós que vivemos nas partes mais altas do município, tivemos de gerar uma grande mobilização de apoio. Ajudar aqueles que ainda enfrentam o cotidiano derrapando no solo enlameado.
Assim o fiz e continuarei enquanto for possível. Mas a questão vai muito além do pouco que vira muito nas ações individuais de apoio. Em li na imprensa nacional, o triste relato de uma professora, moradora de Estrela, que viu sua herança familiar virar lama. Por décadas seus pais pouparam tudo que podiam para comprar terras às margens do Rio Taquari.
E aí chegaram as inundações em abril e maio que reduziram a cotação das terras avaliadas em quase R$ 2 milhões por hectare, para menos de R$ 300 mil/ha em abril e, nos últimos dias, “sem nenhum valor”, lamentou a herdeira. Quantos outros não viram evaporar bens materiais adquiridos em décadas de muito esforço? Quanto anos adiante para uma volta por cima?
Minha mãe lembrou os dias de uma chuvarada forte em Porto Alegre, não na mesma proporção desta, é claro, mas que chegou às portas de nossa casa no bairro Menino Deus. Estou falando dos anos 60 e, naquela enxurrada foram perdidos brinquedos, algumas roupas, uma caixa com fotos e cartas dos dias de namoro com meu pai. Tudo isso guardado em um porão.
E apesar da sujeira, dos bens danificados, a dor mesmo foi ver aquelas juras apaixonadas, escritas com tinta nanquim rasgadas pela força da água suja. Foram muitos dias para secar, depois juntar o que foi possível e voltar a uma nova caixa que, desta vez, não ficou mais na parte inferior da casa.
A previsão é de que outros eventos, como esse que enfrentamos, poderão ocorrer a qualquer momento. Mas aprenderemos a proteger um pouco melhor, nossos bens materiais – como a localização de uma casa nova – e junto a essas lições, as melhores lembranças em fotos, cartas, lenços, poemas. Tudo o que possa ter valor afetivo, desta vez, mantido o mais longe do esquecimento em porões mofados.