Não me apetecem muito as ideias de Soren Kierkegaard, filósofo dinamarquês que viveu no Século XVIII e consumiu boa parte do seu tempo tentando convencer as pessoas de que “viver não vale a pena”. Ele tinha da vida uma visão pessimista.
Entretanto, há uma frase dele que volta e meia utilizo quando preciso recarregar as baterias: “a vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás; mas só pode ser vivida, olhando-se para a frente”. Como viajo com frequência nas Páginas da História Gaúcha, volta e meia uso a frase de Kierkegaard como uma espécie de passagem de ida e volta, pois cada vez que se mergulha no passado do Rio Grande, mais se compreende o porquê de sermos, sei lá, diferentes.
A conselho de Mário Quintana, viajo com uma única bagagem, uma velha e fictícia mala que o “poeta dos sapatos floridos” recomendava que fosse “da cor-do-tempo”. Dia desses, friozinho chegando e a vontade de voar incentivando ao passeio, dei de cara com o José Antônio Flores da Cunha, em 1935.
Em pleno vigor dos seus 55 anos, já havia sido deputado estadual, Intendente (primeiro nomeado e depois eleito), deputado federal pelo Ceará, depois duas vezes pelo RS, combatente na Revolução de 23, outra vez deputado federal, Senador, Interventor no Rio Grande do Sul e, agora, ali está ele, tomando posse como 1º Governador Constitucional do Estado.
Soube depois (as viagens no veículo Página são sempre muito mais rápidas), que um desentendimento afastou-o de Getúlio Vargas e o manteve cinco anos em Montevideu, dia após dia sonhando com a volta.
Convite pra voltar não faltou: o próprio Presidente convidou-o a integrar o governo, em cargo de grande importância. Flores da Cunha disse não.
Voltou só quando o Brasil entrou na 2ª Guerra Mundial mas, já sem convite, foi direto para o Presídio da Ilha Grande, despojado de todos os títulos, inclusive o de General de Divisão, que muito o orgulhava. O que o teria feito recusar o convite de Vargas? “Não era uma questão de cargos”, teria dito.
Tempos depois, indultado pelo próprio Vargas, Flores da Cunha voltou a ser deputado federal mais duas vezes e, na 2ª delas, assumiu a Presidência da Câmara dos Deputados. Estou certo que a revalorização começou por aquela recusa.
Embarco na Página, de novo, e chego a São José do Norte, neste 16 de julho de 1840. Ouço Bento Gonçalves dizer a Domingos Crescêncio que tomar aquela Vila é importante para fixar posição nesta hora decisiva da Revolução. “Mas queimar as casas, não”, disse ele. “A luta é a favor da nossa gente e não contra ela”.
E os Farroupilhas saíram de São José do Norte sem fazer o que os havia levado até lá. Era obrigatório dizer não.
A Revolução seria a mesma com um incêndio criminoso no seu histórico? Quarenta e nove anos depois (percorri em minutos), ouço Floriano Peixoto recriminar Deodoro da Fonseca, em Ouro Preto, quando o viu exaltado demais, no dia da Proclamação da República: “não, Maneco, isso não é do trato”. Dois anos depois era ele, Floriano, o Presidente.
Comecei a viagem de volta ao Rio Grande e, conforme havia dito, a frase de Kierkegaard me ajudou a compreender melhor o que hoje acontece à nossa volta. “A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás”, disse ele. E foi assim que vi o Brasil e o Estado serem gigantes, dizendo não na hora em que foi preciso.
Há um grande número de pessoas prontas a dizerem sim ao primeiro convite, mesmo que seja para a desonra. Mas o mundo continuará sendo dos que sabem dizer não, na hora certa. A despeito de tudo o que aí está, é importante acreditar que a vida vale a pena. E entender a segunda parte do recado de Kierkegaard: “a vida só pode ser vivida, olhando-se para a frente”.