Em uma dessas noites frias, assisti a reprise de um clássico dos anos 90, o filme Gênio Indomável, que narra a história de Will Hunting (Matt Damon), um jovem órfão que trabalhava como faxineiro na Universidade de Harvard. Ele chama a atenção por resolver questões matemáticas de alta complexidade, que nem os mestres daquela conceituada instituição de ensino conseguiam e, ao mesmo tempo, apresentar sérios problemas de relacionamento e comportamento antissocial.
Mas um ambicioso professor, o personagem Lambeau (Stellan Skarsgård), ao perceber que esse talento fora da média levaria prestígio a seu grupo de estudos, decide tratar da recuperação emocional do jovem. A oportunidade surge quando descobre que Will fora longe demais nas brigas. Agredira um policial. Lambeau consegue um acordo com a justiça para recuperar Will com trabalho junto à sua equipe e com psicoterapia.
Com os matemáticos a coisa fluiu, mas após tentativas fracassadas com terapeutas – o gênio indomável – arrasava quem tentasse aproximar-se de seu íntimo – o professor busca a ajuda de um amigo, o psicólogo Sean McGuire (Robin Williams). Enquanto Lambeau quer a genialidade de Will como grife para a sua equipe e alternativa de escalada profissional para o jovem, McGuire busca o equilíbrio emocional antes de tudo.
O embate entre McGuire e Will, a partir da primeira sessão de psicanálise, ganha um perfil diferenciado quando a inteligência de Will não consegue desestabilizar McGuire. Sagaz, faz uma varredura na sala de trabalho do psicólogo, se fixa num quadro que ele mesmo pintara e a partir dali, tenta inverter as posições. Irrita McGuire, ao sugerir que a pintura revelava um homem traído e abandonado pela esposa. Acaba expulso da sala, mas, no dia seguinte, McGuire decide retomar as sessões.
Desta vez, fragiliza a estratégia de Will ao abrir-se, e relatar o que realmente sucedera em seu casamento. Uma vida em sintonia fora derrubada por um câncer incurável, não por uma traição. Em uma cena à beira de um lago, o psicólogo avança. Diz que toda cultura, livros, teses sobre arte e artistas, assimiladas por Will, não representavam muito sem vivência, um contato sem máscaras com a realidade.
Ambos, de alguma maneira, dividem sentimentos semelhantes. Mascaram – um no comportamento agressivo, pela falta de uma estrutura familiar, outro no conformismo que fecha portas às novas experiências e possibilidades, após um trágico fim de uma relação afetiva. Ao final, fica evidente o papel do professor a estimular o jovem Will para abrir-se à vida, dando um sentido mais nobre a sua natural genialidade.
Às vezes, crescemos assim como Will, sentindo uma culpa disfarçada de rancor e deboche, que nos limita a um mundo reservado e triste. Não é necessário ter uma inteligência superior para se entregar a este jogo destrutivo que transforma a negação em agressividade. O personagem principal deste filme banira sentimentos como o amor, no fundo, por não se achar merecedor.
Quando McGuire repete, nas cenas finais, no momento da alta, “não é tua culpa, não é tua culpa”, obriga Will a visitar as mais profundas cavernas da negação que explodem em um choro convulsivo. Libertador para ambos. Ao jovem, permitia a descoberta de que a vida bruta se domina a partir de uma adequada canalização de emoções. Ao professor maduro, deixa evidente a certeza de que os traumas se curam com a busca dos tais momentos felizes. Que tem vez para os gênios e gente como eu e tantos outros. Locomotivas desses trilhos urbanos.
(Obrigado, Magali, pela orientação no texto)