Muitas vezes uma localidade cultiva suas raízes de uma forma ortodoxa. Ou seja, seguindo sempre a mesma linha de pensamento ou maneira de ser de seus habitantes. É uma característica de pequenas localidades. Mas como a carruagem do tempo não para, as coisas mudam. Em Arroio do Meio não foi diferente.
Desde a emancipação o progresso foi chegando. Com ele, novos ares começaram a soprar. Indústrias se instalaram entre nossas divisas. Alguns agricultores começaram a se destacar com suas produções. Comerciantes ampliaram seus pontos. Clubes começaram a proliferar tanto no interior quanto na cidade e colégios a oferecer muitas vagas, para que novos estudantes migrassem de outras localidades para nosso município. Havia ainda o Seminário Sagrado Coração de Jesus e o Colégio São Miguel, que tinham a opção de formação religiosa para padres e freiras.
Politicamente, tudo andava em relativa tranquilidade, com algumas desavenças partidárias, opiniões contrárias a este ou aquele. Tudo dentro da normalidade civilizada de uma pequena cidade, com todos pensando o futuro e resolvendo os problemas coletivamente da melhor forma possível. Enfim, uma cidade pulsante e em franca expansão.
Emancipada em 28 de novembro de 1934, Arroio do Meio era uma típica cidade onde predominava a descendência alemã. Tanto é que os antigos na quase totalidade, só falavam a língua germânica.
Num curto espaço de tempo, uma cidade de predominância alemã – que registrava nomes como Schmidt, Schneider, Fleck, Heineck, Ritt, Linck, Krey, Sommer, Rahmeier, Moesch, Kist, Kirst, Wallerius, Halmenschlager, Fensterseifer, Gerhardt, Reckziegel, Matte, Jung, Bruxel, Kuhn, Schnack, Koerbes, e mais uma centena de sobrenomes de origem alemã – passou a registrar em suas empresas, escolas, clubes, times de futebol e comunidades, nomes como Meneghini, Ongaratto, Casotti, Locatelli, Mânica, Bergamaschi, Federizzi, Fraporti, Catto, Boscaini, Sbardelotto, Zanatta, Bagatini, Dalpian, Alberton, Lorenzini, Zambiazi, etc…
Para constar: Arroio do Meio já contava com moradores descendentes de italianos (Fornari, Piccinini, Orlandini, Poletto, Marchini, Brock, e outros), mas esses não vieram de uma mesma localidade, e nem na mesma época. Aqui estamos abordando a migração de descendentes de italianos, que ocorreu de Coqueiro Baixo para a sede Arroio do Meio a partir do final da década de 1950, até início dos anos 1970.
Muitos desses nomes podem parecer estranhos, por que ficaram pouco tempo em nossa cidade e migraram em seguida para municípios vizinhos, como Lajeado e Encantado. E em alguns casos, foram para centros mais distantes como Bento Gonçalves, Caxias, Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, e tantas outras localidades.
DNA DO COOPERATIVISMO, EMPREENDEDOR E ESTRADEIRO
Em 1958, na localidade de Coqueiro Baixo, interior de Nova Bréscia, quando ainda pertencia ao município de Arroio do Meio, havia a Cooperativa Mista Flor da Serra, e alguns moradores caminhoneiros que faziam fretes para esta empresa. Além dos motoristas que trabalhavam para a Cooperativa, uma geração de jovens com forte vocação estradeira, estava surgindo.
Eram rapazes que não desejavam trabalhar no meio rural e sonhavam em conhecer o Brasil, e que visualizaram no município de Arroio do Meio uma nova meca dos fretes. Sendo que as vagas eram muitas, foram acompanhados por outros conterrâneos que também desejavam empreender e expandir. Em depoimento a alguns anos, Eugênio Meneghini (in memorian) disse: “A fase de guri passou e era hora de tomar o cabresto nas mãos e ir à luta!”
Walter Andreolli, ex-funcionário da Cooperativa, hoje morando em Bento Gonçalves, citou que “o caminhão foi a ferramenta perfeita no tempo certo para a busca da liberdade e concretização dos sonhos destes jovens.”
Nas décadas de 1950 e 1960, no município de Arroio do Meio havia algumas empresas em franca expansão, que necessitavam de caminhões para escoar suas produções, ou adquirir insumos e matéria prima de outros centros. As que mais necessitavam dessa mão de obra na época eram Balas Wallerius, no centro da cidade, Frigorífico Ardomé, bairro Navegantes, Bebidas Bela Vista, hoje Fruki, Curtume Aimoré, e mais alguns comércios. Também visualizaram a oportunidade de estarem próximos à Lajeado, cidade vizinha que igualmente oferecia fretes, caso do Mercado Trieweiller, Imec, e mais uma série de outras empresas que estavam necessitando de caminhões. Encantado igualmente oferecia muitas oportunidades para freteiros, com o Frigorífico Costi, Sabão Fontana, Cosuel, entre outros.
Também tiveram a visão expansiva de um país que estava saindo de uma confusa situação política, devido ao suicídio de Getúlio Vargas, à queda de velhos líderes, surgimento novas lideranças, e sem esquecer, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Enfim, um país que respirava novos ares de progresso e expansão econômica. Um Brasil que começava a pulsar com muita força.
Depois de algumas entrevistas com os protagonistas da história que estamos abordando, chegamos ao nome do primeiro caminhoneiro que resolveu se aventurou nessa nova jornada: José Meneghini.
Ao entrevistar sua esposa Carolina, pois ele faleceu em 1976, colhemos dados dessa impressionante jornada, que foi a migração dos descendentes de italianos de Coqueiro Baixo para a cidade de Arroio do Meio. Carolina citou que seu marido José, teve a ideia de fixar moradia em Arroio do Meio, por que ele comprava porcos pelo interior do município (Arroio do Meio), para revender ao Frigorífico Ardomé, e este fato induziu o jovem motorista a trocar de localidade. O segundo a migrar foi Erlindo Meneghini. Após, foi a vez de Alcides Casotti. E assim por diante, os sobrenomes italianos começaram a fazer parte do cotidiano da pequena e próspera Arroio do Meio.
Mas a chegada desses intrépidos caminhoneiros pelas paragens da nova terra não passou despercebida pelos moradores. Quando chegaram, eles transformaram a fotografia da cidade, sendo possível avistar seus caminhões em diversos locais.
Se hoje, quatro ou cinco caminhões entrando numa pequena cidade como Arroio do Meio, já chamaria à atenção, quando se estabeleceram no município, num curto período de tempo, entraram mais de 15 ou 20 caminhões. Eles usavam preferencialmente o FNM (pronunciava-se Fenemê), o maior caminhão da época até o surgimento do Scania. O detalhe é que isso aconteceu há mais de 60 anos.
Uma das rotas mais trilhadas foi para São Paulo, transportando miúdos de porco (orelhas, pés, rabos e costelinhas) em caixas de madeira, cobertas de sal grosso para conservar, pois não existiam câmaras frias. De São Paulo seguiam para o Rio de Janeiro, mais precisamente em Volta Redonda onde carregavam ferro e aço, para voltarem novamente e descarregar em solo paulista, pois a capital São Paulo, e todo seu entorno, estava num frenético processo construtivo. Não havia material suficiente para a demanda das obras. Em Campinas e arredores carregavam açucar e, em Cabo Frio, carregavam sal. O açucar era quase todo destinado à fábrica de Balas Wallerius e Bebidas Bela Vista, e o sal, para o Frigorífico Ardomé e Curtume Aimoré. Com o Mercado Trieweiller, de Lajeado, mantinham uma relação de troca de mercadorias. Uma parte do frete era convertida em valor a retirar em compras. Para situar: o Mercado Trieweiller ficava às margens do Rio Taquari, entre Lajeado e Estrela, onde hoje na margem oposta, em Estrela, está o Porto.
O período dessa viajem durava mais de vinte dias ou mês, pois naquela época as estradas eram quase todas de chão batido (terra), e os caminhões eram todos “queixo duro”, ou seja, sem direção hidráulica. Os restaurantes eram poucos, no máximo uma lanchonete para um café com pastel, junto a um posto de combustíveis, e talvez um a cada 100 quilômetros ou mais. Oficinas também eram raras, talvez com a mesma distância entre uma e outra. Existiam pouquíssimos telefones à disposição. O policiamento era precário, e por vezes, andava-se de dois a três dias até encontrar um posto policial. Celular, GPS, rádio comunicador, assistência técnica, rastreador, ar-condicionado, e outras comodidades que existem hoje em dia, era algo inimaginável naquela época. Os caminhões não tinham forração, e o motor ficava praticamente dentro da cabine. Eram muito quentes e barulhentos.
O então jovem Aleixo Bagatini relata que por ser solteiro e sem namorada naquela época, não se preocupava em voltar, fazendo fretes para onde o enviassem. Muitas vezes, sua viagem durava de quatro a cinco meses.
Além de motoristas, exerciam a função de mecânicos, borracheiros, cozinheiros, e ainda cuidavam da própria segurança. Ao anoitecer encostavam os caminhões em algum posto de combustíveis, preferencialmente em comboios, e dormiam na cabine sempre com uma arma ao alcance da mão.
URBANIZAÇÃO, DESENVOLVIMETO DO COMÉRCIO, GASTRONOMIA, VIDA SOCIAL E LIDERANÇA COMUNITÁRIA
Outra curiosidade, é que começaram a construir suas moradias com o mesmo modelo, e foram repassando esse projeto de mão em mão, por isso, todas as casas eram praticamente iguais. Segundo informações colhidas com os protagonistas desta história, alguns dos pedreiros eram Edgar Nilsson e seu filho Telmo, Alípio Matte, Armindo Picinini, e Theodoro Beckmann. Com o passar do tempo, as reformas aconteceram e as moradias foram sendo modificadas.
Mas como “os gringos não estavam para brincadeira”, além dos caminhões e das moradias, suas influências começaram a aparecer também nos comércios, clubes de futebol, colégios, e a infiltrar-se nos demais segmentos da sociedade arroio-meense. No decorrer da pesquisa para essa reportagem, antigos moradores comentaram que os bailes do Clube Esportivo Arroio do Meio e da Sociedade Aliança Católica, nunca mais foram os mesmos. O que antes eram bailes comportados e, digamos, de acordo com os ditames sociais daquele tempo, transformaram-se em festas mais alegres e barulhentas. Os italianos reuniam três, quatro ou cinco mesas, falavam alto, cantavam, batiam nas mesas e dançavam muito. Era uma festa!
A canção “Mérica, Mérica” sempre foi a mais entoada, sendo considerada como uma espécie de hino nacional para eles, que é cantada até hoje com muito orgulho e respeito. Tanto que Eugênio Meneghini, antes de falecer solicitou que durante seu velório, diante de seu corpo, todos cantassem essa canção. Assim foi feito!
Entrar em Arroio do Meio e usar a cidade apenas para morar, não foi suficiente. Uniram-se então, numa sociedade comercial e fundaram o primeiro supermercado da cidade: o Supermercado Arroio-meense, hoje ainda ostentando o mesmo nome, mas de propriedade de Juarez Fontana. Não que não existissem mercados no município, mas eram pequenos comércios chamados de “vendas”, que atendiam praticamente só os bairros onde estavam estabelecidos. O primeiro gerente do “Super”, como era conhecido na época, foi Egídio Sbardelotto, em 1.967.
A vocação dos italianos para restaurantes não demorou para surgir, e ao pesquisar com alguns colaboradores, chegamos ao nome de Albino Ongaratto. Conversando com Helena Dalpian (cunhada de Ongaratto), e seu filho Norberto, apontaram que Albino Ongaratto foi o primeiro a se aventurar na área gastronômica, abrindo o caminho para que outros seguissem o mesmo ramo. O primeiro restaurante foi em Juquiá, São Paulo, depois Curitiba, e a seguir, no Rio de Janeiro. Albino Ongaratto era natural de Relvado, mas passou por Coqueiro Baixo, onde conheceu sua esposa Vilma Caumo e migrou para o mundo.
E o chamado “sangue quente” para a política aflorou. Em 1.963, Arnesto Dalpian foi eleito prefeito. Com alguns adeptos também filiados ao PTB, pois eram Brizolistas, fizeram forte campanha eleitoral e elegeram o candidato a prefeito que trouxeram de Coqueiro Baixo. Era o fato relevante que faltava para sacramentar a migração italiana que aconteceu em Arroio do Meio, nas douradas décadas de 1950 e 1960.
Detalhe: Dalpian ainda morava em Coqueiro Baixo quando foi eleito pela primeira vez. Depois, foi reeleito mais duas vezes.
ACOLHIMENTO E CONVÍVIO FRATERNAL
Maria Meneghini, esposa de Erlindo (in memorian), relatou com muito orgulho, que ao chegarem em Arroio do Meio em 1.958, não tinham certeza de nada. Não sabiam onde iriam morar, quem seriam seus vizinhos, se era um lugar descampado ou povoado, enfim, confiou exclusivamente nas palavras do marido. Da mesma forma agiam entre as amigas, enquanto que os maridos estivessem viajando: “Era assim. Nos apoiávamos como possível e ninguém ficava na mão. Uma ajudava a cuidar os filhos da outra, enquanto que o marido não voltasse da viajem”.
E lembra que essas viagens pelo Brasil afora, duravam de 20 a 30 dias. A única notícia que recebiam era através de outro caminhoneiro que cruzava com seus maridos, e trazia algum recado. Também recebiam telegramas, mas não respondiam pois não sabiam onde os maridos estavam.
Quando um bebê iria nascer, todas voluntariamente se faziam presentes. Se escoravam até que os maridos voltassem, o que em muitas oportunidades, acontecia somente depois da criança já ter nascido. E completou dizendo que “todas se comunicavam informando quem tinha açúcar, farinha, sal, arroz, ou qualquer alimento em quantidade, e que poderia ceder até que os maridos voltassem das viagens. Depois, faziam os acertos entre si, e tudo recomeçava do zero outra vez!”
Helena Dalpian, esposa do ex-prefeito Arnesto, com os olhos marejados comentou que seu marido fundou a Mandolates Helda, e que o nome da empresa foi em homenagem a ela, sua amada e fiel companheira, HELena DAlpian. Essa junção deu origem ao nome da empresa.
Irma Alberton complementou: “quanto maior a dificuldade, mais felizes nós somos”.
Resumindo: eles saíram de sua localidade (Coqueiro Baixo e arredores), deixando suas casas, áreas de terras, e em seus caminhões, traziam filhos pequenos e esposas grávidas, e principalmente, a esperança de estarem fazendo a coisa certa. Chegaram a Arroio do Meio, compraram terrenos, construíram suas casas e abriram comércios. Povoaram a cidade de caminhões e saíram a desbravar o Brasil. Não satisfeitos, ainda elegeram um prefeito (Arnesto Dalpian) sem que este estivesse morando em Arroio do Meio. Tudo isso, numa terra povoada na maioria por outra etnia (alemães). Ressalta-se o fato de que Dalpian foi eleito pelo partido opositor ao sistema vigente na época. Durante o Regime Militar, foi prefeito duas vezes (31-12-1963 a 31-01-1969, e 31-01-1973 a 31-01-1977), sendo reeleito em mais uma oportunidade (31-01-1983 a 31-12-1988).
Não podemos deixar de citar uma parte muito importante nesse processo de migração: suas esposas. Elas os acompanharam, muitas vezes desconfiadas da própria sorte, foram fiéis aos ideais, carregaram em seus ventres a prole que estava se formando, acreditaram que este era o caminho certo, e deram segurança, para que seus maridos desbravassem o país.
Elas, com lealdade e companheirismo, tipo “vai em frente e deixa que por aqui eu tomo conta de tudo!”, foram imprescindíveis para que tudo acontecesse da melhor forma possível.
Nota: quando da pesquisa e elaboração dessa reportagem, reuniram-se para um almoço/reunião no Restaurante Moinho da Luz, mais de vinte personagens que vivenciaram essa migração que aconteceu a partir de 1958. O texto foi lido e debatido, a fim de ratificar os fatos aqui citados.