Desde o movimento Caras Pintadas, responsável por derrubar o então presidente Fernando Collor, o Brasil não via uma mobilização grandiosa. Foram mais de 250 mil pessoas que saíram às ruas em um só dia. Contabilizando os números desde o início da onda de protestos, chega-se a quase 400 mil em duas semanas. A reviravolta nacional, que teve como estopim o aumento das tarifas de ônibus em algumas capitais, provoca a classe política a mudar a postura Vale do Taquari – O dia 17 de junho entrou para a história brasileira. Após duas décadas de apatia – quando, em 1992, milhares de pessoas saíram à rua pedindo o impeachment do então presidente Fernando Collor -, 250 mil brasileiros, divididos nas principais capitais, se mobilizaram para pedir um país melhor.
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A cena mais emblemática ocorreu em Brasília, a capital federal. Eram cerca de 20 horas quando parte das cinco mil pessoas que protestavam subiram a rampa do Congresso Nacional e ocuparam o teto, posando em frente às abóbodas do prédio desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer.
Os motivos são muitos: contra a corrupção; contra os investimentos na Copa do Mundo; contra o aumento considerado abusivo das passagens de ônibus; contra o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 37, que tiraria o poder de investigação do Ministério Público (MP). Também têm reivindicações, como mais investimentos em Educação, em Saúde, em infraestrutura, em mobilidade urbana. A lista é extensa.
Fora os atos isolados de vandalismo por alguns manifestantes, uma das críticas que se vê é quanto a falta de foco. “A gente pode perceber que existe uma insatisfação, um descontentamento generalizado, mas sem muita clareza”, avalia o prefeito Sidnei Eckert (PMDB). “É uma série de razões. Um protesto ‘contra tudo’.”
Visão semelhante tem o vice-prefeito arroio-meense, Áurio Scherer. O petista ressalta a importância da juventude sair da acomodação e mostrar a indignação, mas acredita ser necessário um norte nestes protestos. “Hoje eles estão sem rumo definido, com muitos objetivos, e isso dificulta o atingimento de uma meta.”
O empresário Júlio Gasparotto Sobrinho avalia que é a insatisfação do povo com a impunidade, corrupção, falta de expectativas na educação e com as péssimas condições de infraestrutura básica que deveriam ser oferecidas pelo setor público. “O povo está pronto pra estourar. Não há cores partidárias. É a sociedade que não aguenta mais. Aquela bandeira de uma estrela e duas letras, sequer está representada,” observa.
Ele critica a forma que os governos utilizam os meios de comunicação para iludir a sociedade. Acredita que a origem do caos está no próprio sistema político. Os mandatários dos partidos, não permitem a criação de novos líderes que pensem no interesse coletivo.
Reviravolta na política
“A política é a vidraça mais fácil de ser atingida”, reflete Eckert, acrescentando que ela nada mais é que o reflexo da própria sociedade. Porém, acredita que esta onda de manifestação provoca a classe a repensar a maneira de agir.
O prefeito arroio-meense cita como exemplos uma maior
responsabilidade nas aplicações dos recursos. Adverte que a maioria dos políticos é honesta, mas, assim como pequenos grupos que tentam manchar os manifestos, ocorre o mesmo no poder público.
Para Scherer, é necessário que a reforma política saia do papel. Acredita que o sistema atual permite uma série de anomalias no setor público que precisam ser retiradas. “Mas a política precisa de uma reforma em todo o mundo. Isso não é exclusividade do Brasil.”
Segundo o empresário Júlio Gasparotto Sobrinho, os governantes deveriam ter observado crises semelhantes que ocorreram recentemente em outros países, na Europa e América do Norte. “Estive na Espanha e Itália antes da crise, e me surpreendi com a modernidade das obras públicas, privadas e o poder aquisitivo da população. Meses depois a TV manchetava o endividamento destas nações.
Na saúde, cita a demora no agendamento de consultas e vaga de leitos em hospitais. Mas é na Educação, conforme Gasparotto, que está o maior descaso. “O governo oferece R$ 670 de salário em concurso público para o magistério. Querem fazer marketing em cima da educação e não pagam piso. O professor que antes era referência, hoje não é mais valorizado”
Na opinião do vereador Roque Haas (PP), o gargalo está na centralização do sistema político e do poder: “Muitas vezes os municípios pequenos acabam pagando pela corrupção que ocorre em Brasília e nos grandes centros.”
Para Haas, este é apenas o começo da crise. Mostra que o país e nação, estão caminhando para um abismo financeiro. Agora, num primeiro momento, as queixas são com o transporte coletivo, amanhã, serão outras reivindicações. Começou com meia dúzia de manifestantes e já toma conta de todos os cantos do país.
“Não adianta o governo oferecer linhas de crédito sem dar ferramentas para o pagamento. Para muitos será difícil honrar os compromissos a longo e médio prazo”, dimensiona Roque.
Sem Copa
O prefeito de Capitão, César Beneduzzi (PDT), entra em consonância com algumas vozes dos protestos. Compartilha da opinião de que o Brasil não tem condições de receber, tão cedo, eventos grandiosos como a Copa do Mundo de 2014. Entre os problemas apontados está a falta de infraestrutura. “Já tem países reclamando dos nossos aeroportos, por exemplo”. Segundo ele, esses problemas mancham a imagem do país ao restante do planeta.
Acredita que a Copa trará benefícios aos brasileiros, mas não a todos. Para ele, parte da quantia investida nos estádios de futebol deveria ser direcionada para outros setores, como Educação e Saúde. “Muitas pessoas serão prejudicadas com isso.”
Mobilização
Quase 20 protestos ocorreram em diversas cidades do país. Só no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Novo Hamburgo, Venâncio Aires, Jaguarão, Bagé, Santa Cruz do Sul, Pelotas, Rio Grande, São Leopoldo e Passo Fundo tiveram as ruas ocupadas pela população até esta quarta-feira.
No Vale do Taquari, Lajeado promoveu um protesto aliado à um questionamento nacional. A mobilização contra a aprovação da PEC 37.
Um dos idealizadores da manifestação é Leonardo Cesar da Silva, de 16 anos, estudante do segundo ano do Ensino Médio no colégio Presidente Castelo Branco (Castelinho), de Lajeado.
“Nossas reivindicações vão além da PEC. Queremos melhora na saúde pública, na educação, nos transportes. Também somos contra os gastos excessivos na Copa do Mundo”, elenca.
A mobilização vai além da cidade polo do Vale do Taquari. Moradores de diversos municípios da região se deslocaram até Lajeado para protestar. Entre eles está o microempresário arroio-meense Augusto Brock.
Entre os motivos está o que considera uma incoerência, a retirada do poder de investigação do Ministério Público. “Mesmo que seja uma função da Polícia (Civil), nos últimos anos o MP tem sido mais efetivo nas investigações de crimes. Se tirarmos o poder dos poucos que fazem pelo país, o que sobra?”
Para os favoráveis à emenda, proposta pelo deputado Lourival Mendes (PTdoB/MA) o que se quer é delimitar a função de cada um dos poderes. Alegam que o Ministério Público, por ser um setor do Judiciário que faz a acusação, investigar crimes poderia colocar em xeque o seu trabalho. Conforme o advogado Diogo Costa, em artigo publicado em diversos portais na internet, a população deveria aproveitar o momento para pedir o fortalecimento da Polícia Civil.
Diferenças
Na opinião de Gasparotto, o movimento é diferente das Diretas Já, que tinha o envolvimento organizado de partidos políticos, e é mais semelhante com o Fora Collor. “O atual movimento é de bem e pacífico, só é necessário investigar quem são os desordeiros, se são militantes infiltrados”, expõe.
Gasparotto recorda brevemente de um momento em que esteve na fila do pedágio, juntamente com outros 15 veículos. “Buzinei e acabei provocando um buzinaço com a participação de 80% dos motoristas. Foi espontâneo”, evidencia.
Por fim indaga: “em que setor o governo cumpre sua obrigação com os deveres previstos na constituição. Se eu tivesse, 30 anos, com certeza, estaria na rua, protestando”, conclui.
“O protagonismo dos movimentos tem sido de grupos com acesso à informação”
O professor da Univates, mestre em História, Mateus Dalmáz, conversou com o AT sobre as manifestações que ocorreram em todo o país. Confira:
AT – Para o senhor, o que representam esses protestos Brasil afora?
Dalmáz – Significam, por um lado, a expressão de um conjunto de descontentamentos da sociedade em relação ao Estado, por questões como o aumento das passagens do transporte coletivo e os gastos públicos com as obras para a Copa do Mundo, estendendo-se para, como a corrupção e a deficiência dos serviços públicos. Também, representam um fenômeno midiático, uma vez que a exposição nas mídias foi grande, atingindo ares de espetáculo midiático, o que motivou muitos manifestantes a participar dos protestos.
AT – Lajeado fez um protesto contra a PEC-37. Como você vê essas mobilizações no restante do Estado?
Dalmáz – As manifestações no Estado reproduzem as motivações que levaram milhares de manifestantes às ruas no restante do país, bem como a sedução exercida pela mídia no público manifestante, ao expor o alcance social dos protestos em rede nacional.
AT – O senhor acha que os municípios do interior aproveitarão este momento para também se engajarem?
Dalmáz – Sem dúvida. Ainda mais que o protagonismo dos movimentos tem sido de grupos com acesso à informação, conectados nas redes sociais, integrantes de escolas e universidades, cujo poder de mobilização (através das mídias interativas) é grande e o desejo de protestar é favorecido pela conjuntura de grande exposição na imprensa.
AT – O senhor concorda que há falta de foco?
Dalmáz – Atualmente, protesta-se contra diversos aspectos, o que pode repercutir em poucos resultados concretos. Em Porto Alegre, no entanto, há notícias dando conta de uma articulação entre prefeitura e estado para diminuir o valor das passagens do transporte público na capital. Trata-se de um resultado concreto. É preciso que haja mais repercussões objetivas para que os protestos não fiquem sem resultados práticos.
AT – Há um repúdio a grupos que estão promovendo vandalismos nestes protestos. Mas há aqueles que dizem que não há revolução sem protestos. Qual a sua opinião sobre isso?
Dalmáz – Há uma diferença entre protesto e revolução. O protesto respeita as leis constitucionais e democraticamente expressa seus descontentamentos. A revolução pressupõe uma mudança radical das estruturas da sociedade em um curto espaço de tempo, inevitavelmente com a destruição material e simbólica da estrutura anterior. O objetivo dos manifestantes, atualmente, é menos uma revolução do que um protesto. Assim, os próprios integrantes dos movimentos têm tido o cuidado de encaminhar manifestações pacíficas, condenando depredações que retiram a legitimidade do ato público e coletivo perante o Estado e a sociedade. Ambos convergem no interesse de manter as regras, inclusive aquela que garante liberdade de expressão.
Quase 300 mil
As ondas de protestos começaram de maneira tímida em Porto Alegre, ainda em maio. Cerca de duas mil pessoas se rebelaram contra o prefeito da capital, José Fortunati, que tinha aceito aumentar as passagens de ônibus de R$ 2,85 para R$ 3,05. Menos de um mês depois, foi a vez de São Paulo se manifestar.
Os protestos eram contra os também 20 centavos que o governo paulistano queria fazer. O primeiro protesto foi no dia 6 de junho, quando reuniu duas mil pessoas. chegando a dez mil no dia 13 de junho – quando a ação da polícia provocou uma reação negativa de grande parte da população.
Ocupação de Brasília
Eram quase 20h quando centenas dos cerca de 5 mil manifestantes que estavam em Brasília decidiram subir a rampa para ficar, por alguns minutos, gritando palavras de ordem. Apesar da multidão, a Polícia Legislativa conseguiu convencer a maioria a descer do local em segurança e nenhum confronto mais grave foi registrado.
Marcha dos cem mil
O Rio de Janeiro protagonizou, pela segunda vez em sua história, a marcha dos Cem Mil. As ruas foram tomadas por mais de cem mil pessoas que se manifestaram em apoio aos apelos de São Paulo, contra o aumento da passagem de ônibus, clamando por mais investimentos em Educação, Saúde e Segurança Pública em detrimento da Copa do Mundo e das Olimpíadas.